Tributação da mulher na Constituição: o caso do salário-maternidade no STF

Na mesma semana em que o Fórum Econômico Mundial (WEF) divulgou o Global Gender Gap Report 2020, o Ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal, divulgou a pauta de julgamentos da Corte para este início de 2020. Dentre os vários temas, retorna à pauta o RE nº 576.967, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, no qual se discute, em repercussão geral, a incidência, ou não, de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade.

A tributação da família e a desigualdade de gênero no mercado de trabalho retornam ao centro da agenda de debates públicos.

relatório sobre desigualdade de gênero, publicado no dia 17/12/19, traz a triste constatação de que o Brasil, de um total de 153 países, ocupa a 92ª posição no ranking global de desigualdade de gênero. Na verdade, não se trata de um fenômeno exclusivo brasileiro. A desigualdade de gênero, embora tenha apresentado uma diminuição no último ano, de acordo com o relatório do WEF, levará 99 anos para acabar.

Os desafios a serem enfrentados no combate à desigualdade de gênero se refletem em diversas áreas, como é o caso da representação política feminina, setor de especial destaque deste último relatório, e da desigualdade no mercado de trabalho, no que houve aumento em nível global. No ranking de igualdade salarial entre homens e mulheres, o Brasil ocupa a 130ª posição.

Em números recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do IBGE, viu-se que mulheres com o primeiro filho veem seus salários reduzidos em aproximadamente 24%. E se for mãe de três ou mais filhos, estas perdas podem chegar a 40% dos rendimentos. Ou seja, quantos mais filhos, menos as mulheres são remuneradas no mercado de trabalho.

A natalidade é condição de existência de qualquer sociedade e, por isso mesmo, o Constituinte reafirmou, em distintas passagens, as garantias de proteção à família.

Nesta proteção constitucional à família, dentre os benefícios previdenciários, tem-se o chamado salário-maternidade, que se presta como modalidade de política pública que tem alcance direto sobre o meio ambiente do trabalho, ao lado de outros, como: a garantia de estabilidade para a gestante desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto; o intervalo para amamentação até que o bebê complete 6 (seis) meses de vida; e a proibição de exercício de atividades insalubres por gestantes e lactantes, recentemente ratificada pelo STF, no julgamento da ADI 5938 (arts. 391 a 400 da Consolidação das Leis Trabalhistas).

O salário-maternidade encontra-se previsto na Constituição de 1988 como típico “benefício previdenciário”, conforme os arts. 6º, 7º, incisos XVIII e XX, e 201, inciso II.

Com efeito, o salário-maternidade não se aplica apenas à mulher gestante, mas também à mulher ou ao homem no caso de adoção, nos termos da Lei nº 12.873/13, possibilitando o alcance do “benefício” aos indivíduos de famílias formadas por casais homoafetivos, por exemplo.

O mesmo se diga em relação ao caso de falecimento da segurada ou segurado que fizer jus ao recebimento do salário-maternidade, ocasião em que o cônjuge ou companheiro (a) sobrevivente, que tenha a qualidade de segurado, poderá receber o “beneficio” por todo o período ou pelo tempo restante.

Entretanto, é inequívoco que o salário-maternidade, devido a condições biológicas (ao menos até presente o momento, somente as mulheres podem engravidar), é um fator de alta relevância para a redução das desigualdades de gênero e proteção das mulheres no mercado de trabalho, ainda que não logre o êxito em mantê-las no emprego após o período de licença.[7] Em vários países, atualmente, as mulheres são remuneradas para ter filhos.

No passado, o salário-maternidade era de inteira responsabilidade do empregador, que se via obrigado a arcar com a integralidade da remuneração da empregada durante todo seu período de afastamento. Obviamente, isso gerava uma distorção de gênero no mercado de trabalho, pois, do ponto de vista do empregador, a contratação de mulheres se tornava demasiado onerosa em comparação à contratação de homens.

A Convenção nº 103 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 18 de junho de 1965 e promulgada pelo Decreto n° 58.820, de 14 de julho de 1966, passou a prever, em seu art. 4°, item 8, que, “Em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega”.

Em vista disso, no item 4, do art. 4º, a Convenção prevê que as prestações devem ser concedidas por meio de um sistema de seguro social ou fundo público. Assim, o legislador brasileiro retirou o ônus do empregador em relação ao custeio da remuneração da mulher durante o período de afastamento em função de licença-maternidade.

Desde então, o custeio do salário-maternidade nos 120 (cento e vinte) dias de afastamento passou a ficar a cargo da previdência social, e não do empregador. Apenas a forma de pagamento será feita por intermédio do empregador.

Provado o pagamento, abre-se para o empregador o direito de compensação, conforme determina o art. 72, da Lei n° 8.213/91, com as alterações previstas pela Lei nº 10.710/03. Excluem-se do regime de compensação apenas os empregadores microempreendedores individuais (MEI´s), porquanto nestes casos o salário-maternidade é pago pela previdência social, na forma do §3º, do art. 72, da Lei n° 8.213/91.

No caso em exame indaga-se se, no conteúdo da expressão “folha de salários”, prevista no art. 195, inciso I, “a”, da CF, nele se insere o salário-maternidade. Esta é, pois, toda a discussão que se coloca à apreciação do STF no julgamento do RE nº 576.967, cuja votação iniciou-se em 06/11/19.

A questão constitucional tem origem no fato de o art. 18, inciso I, “g”, da Lei nº 8.213/91 incluir o salário-maternidade entre as prestações devidas pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS), ao passo que o art. 28, §2º e §9º, “a”, da Lei nº 8.212/91 determina que o salário-maternidade, ao contrário de outros “benefícios” previdenciários, integra o salário-de-contribuição, para fins de incidência de contribuições previdenciárias, na parcela a cargo do trabalhador.

No que concerne às contribuições previdenciárias do empregador, o art. 22, inciso I, da Lei nº 8.212/91, menciona as “remunerações pagas, creditadas ou devidas a qualquer título, [...] destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma”.

No processo, debate-se se a contribuição previdenciária deve ser recolhida durante o período de pagamento do salário-maternidade, como base de cálculo da contribuição previdenciária sobre folha de salários, a cargo do empregador. Para o recorrente, o valor não possuiria natureza remuneratória, porquanto a empregada resta fora das atividades.

Ora, em relação à base de incidência para as contribuições para custeio da seguridade social a cargo do empregador, tem-se previsão expressa no art. 195, inciso I, “a”, da CF, como folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, de forma que somente o que se enquadre neste conceito poderá compor a materialidade de incidência da contribuição previdenciária.

A interpretação da extensão do conceito de “folha de salários” ao “salário-maternidade” deve acompanhar o exame de coerência com o modelo de seguridade social adotado pelo Constituinte de 1988. Daí que somente numa interpretação conforme a Constituição pode ser empregado o disposto no art. 22, inciso I, da Lei nº 8.212/91.

A partir da interpretação dos dispositivos do art. 201, caput e § 11 (os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei) e do art. 195, inciso I, “a”, da CF, o STF fixou, como repercussão geral, no julgamento do RE nº 565.160, que só devem compor a base de cálculo da contribuição previdenciária, a cargo do empregador, aquelas parcelas pagas com habitualidade (Tema 20: “A contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional nº 20/1998”). E, como se sabe, a lei não faz qualquer ressalva ao conceito de ganho habitual.

Como bem ressaltou o Relator do RE nº 576.967, Ministro Luís Roberto Barroso, na sessão de julgamento de 06/11/19, por não se tratar de contraprestação pelo trabalho ou de retribuição paga diretamente pelo empregador ao empregado em razão do contrato de trabalho, o salário-maternidade não se adequa ao conceito de folha de salários e, consequentemente, não compõe a base de cálculo da contribuição social a cargo do empregador, prevista no art. 195, inciso I, “a”, da CF.

Quanto à habitualidade, o Relator esclareceu o que se sugere óbvio a muitos: não há que se falar em recebimento do salário-maternidade habitualmente, porquanto há limitações biológicas para que a mulher engravide como “habitualidade”. Tem razão.

Após o voto do Ministro Relator acolhendo a tese do recorrente, no sentido de reconhecer que o salário-maternidade não se amolda à materialidade de incidência prevista art. 195, inciso I, “a”, da CF, no que foi acompanhado pelos Ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia, e da divergência dos Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, pediu vista dos autos o Ministro Marco Aurélio. A votação, portanto, está em 4 votos a 3 pela não incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade. Agora, a sessão de 05/02/20 iniciará com o voto-vista do Ministro Marco Aurélio e a tomada de votos dos demais Ministros.

Como anotou o Ministro Marco Aurélio, quando do pedido de vista efetuado na sessão plenária de 06/11/19: “É possível conceber-se contribuição social a cargo do empregador se ele não satisfaz a parcela geradora dessa mesma contribuição social? Já que o ônus é da previdência? O sistema não fecha...

Estamos convencidos de que uma Constituição que considera a família como a base da sociedade (art. 226), e traz garantias de proteção à maternidade, de licença à gestante e proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 6º e 7º), de se ver, atribui verdadeira garantia de imunidade tributária ao benefício do salário-maternidade.

Quando o art. 195 da CF determina que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, autoriza o custeio coletivo de direitos sociais garantidos, cujo interesse extrapola a esfera de determinados grupos, alcançando toda a sociedade. Contudo, não pode incorrer em excesso, discriminação ou quebra de isonomia.

Apenas para que se tenha ideia do potencial discriminatório, ao se argumentar que o recebimento de salário-maternidade integra o cálculo do “benefício”, a ser considerado no cálculo da aposentadoria da trabalhadora, deveria ser objeto de incidência da contribuição previdenciária, isto findaria por privilegiar mulheres sem filhos sobre aquelas com filhos, pois a cada um destes a mulher teria que trabalhar mais seis meses, para atingir a quantidade de salários-de-contribuição.

Pelo princípio da solidariedade aplicado às contribuições previdenciárias, o custeio por toda a sociedade representa o interesse coletivo. Nenhum outro benefício recebeu do Constituinte sucessivas reafirmações quanto o salário-maternidade. Daí não ser possível argumentar que o Constituinte não admita o seu pagamento com o afastamento da beneficiária ou beneficiário, nos casos de adoções ou de ausência. Ora, mesmo a segurada desempregada que mantenha vínculo com a previdência social deve ter direito ao “benefício”, nos termos dos arts. 15, 71-B, III, e 73, da Lei nº 8.213/91.

A solidariedade social sustenta o modelo de seguridade criado pelo Constituinte de 1988, de modo a permitir contribuições sem contrapartida por uma questão de lógica jurídica, há que sustentar igualmente o salário-maternidade imune a contribuições previdenciárias, por falta de “habitualidade”, contando-se para os fins de aposentadoria o tempo de fruição da licença-maternidade da gestante.

Destaque-se que a mesma solidariedade social que embasa a contribuição previdenciária dos inativos serviu de justificativa recente para que o Supremo Tribunal Federal infirmasse o direito à desaposentação com o correspondente recálculo do benefício, por parte dos aposentados que permanecem no mercado de trabalho, a evidenciar não só que (i) o mesmo raciocínio pode ser reproduzido no presente caso, como também que (ii) há recursos no sistema provenientes de recolhimentos sem contrapartida.

O salário-maternidade não pode ser considerado como um “benefício” previdenciário concedido à mulher como se fosse um “privilégio”. Cuida-se de um direito social garantido pelo dever estatal de proteção à família, o que só vem a reforçar o interesse legítimo de custeio por parte de toda sociedade. Por isso, o salário-maternidade considera-se verdadeira política pública de proteção à família, como corroboram as alterações trazidas ao instituto pela Lei nº 12.873/13. Não devemos esquecer que a assistência social tem por objetivo a proteção à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (art. 203, inciso I, da CF); ao que o salário-maternidade é, antes de tudo, uma forma de proteção social da criança, individualmente, e da família, na sua totalidade.

Disponivel em: https://www.conjur.com.br/

Data: 22/01/2020