Você Colunista - Coluna do dia 23/10/2024



O que esperar do Processo Administrativo Fiscal sob a óptica do PLP 108/2024?


Parece-me unânime na doutrina e jurisprudência pátrias que um dos pilares do Processo Administrativo Fiscal consiste no exercício do controle interno da legalidade dos atos da Administração Pública.

Diz-se interno porque o controle externo compete ao Poder Judiciário, que, caso provocado, não pode ser excluído da apreciação de lesão ou ameaça a direito, conforme consagrado princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV).

Nesse contexto, o controle interno da legalidade objetiva analisar se o ato questionado pelo contribuinte (a quem é outorgada a titularidade do início do PAF, normalmente, pela impugnação ou manifestação de inconformidade) vai ao encontro ou de encontro à lei.

Nesta hipótese, deverá a autoridade, no exercício do seu autocontrole, revisar o lançamento, corrigir a irregularidade identificada e afastar o ato impugnado; naquela, deverá mantê-lo.

Eis que surge, como decorrência da promulgação da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, que aprovou a Reforma (ou seria Revolução?) Tributária em nosso país: o PLP 108/2024.

Tal Projeto de Lei Complementar visa instituir o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços – CG-IBS, ao tempo em que dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do IBS.

Tangencialmente, trouxe alterações importantes no Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, que não serão objeto destas linhas. Também não será objeto o PLP 68/2024, que trata especialmente do IBS e da CBS.

Pois bem, no que concerne ao Processo Administrativo Fiscal, um primeiro ponto que merece análise consiste no art. 91, da Seção IV, do Capítulo III, ao tratar dos provimentos vinculantes.

Inicialmente, o artigo caminha bem ao prever a necessidade de o Comitê Gestor observar decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça (algo semelhante ao que hoje encontramos no Regimento Interno do CARF).

Não se nega a importância da vinculação aos precedentes à segurança jurídica e à previsibilidade, para utilizar o prestígio argumentado no item 53, da exposição de motivos, ao tratar do referido art. 91. O problema reside, pois, nos parágrafos.

O §3º expõe que “fica vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo administrativo tributário, afastar a aplicação ou deixar de observar a legislação tributária sob o fundamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade”.

Quanto ao controle de constitucionalidade, rege o consenso de que, de fato, não cabe às autoridades administrativas, mas, sim, ao Poder Judiciário; então, onde reside o problema? Precisamente, na palavra “legislação”.

Há dados que apontam um percentual maior de decisões favoráveis aos contribuintes no âmbito do CARF, quando comparado com decisões das DRJs, por exemplo.

Argumento falho seria tachar os auditores fiscais das DRJs de parciais. Por sua vez, argumento insuficiente seria atribuir à composição paritária como única justificativa ao dado, mesmo quando a maioria das decisões do CARF se dão por unanimidade ou maioria ampla, sendo minoritária a utilização do voto de qualidade.

Portanto, outro elemento essencial à autonomia do CARF consiste, justamente, na não vinculação que o CARF tem à legislação tributária, mas apenas à lei tributária. Em outras palavras, enquanto os auditores fiscais não podem adotar condutas diversas daquelas previstas na legislação tributária, os conselheiros possuem essa prerrogativa.

Eis o gravíssimo risco que se avizinha com o PLP 108/24.

Em suma, os novos julgadores do Comitê Gestor do IBS estariam impedidos de afastar portarias, instruções normativas, decretos, resoluções ou o nome que se queira dar a atos administrativos infralegais.

Atento a isso, Eduardo Salusse expõe que “Soa muito inadequado e contraditório – para usar palavras amistosas – pretender proibir que a administração tributária, que é obrigada a observar o princípio da legalidade, seja proibida de afastar normas infralegais que violem a mesma legalidade”.

E no que isso acarreta? Esvaziamento do Processo Administrativo e nova crescente de judicialização, o que contraria uma das finalidades buscadas em reduzir a litigiosidade.

Mas não para por aí.

O PLP também prevê que o contencioso administrativo do IBS será concebido de três instâncias, bem como que haverá uma instância de uniformização da jurisprudência “composta, em meio virtual, pela Câmara Superior do IBS, integrada, de forma colegiada e paritária, exclusivamente por servidores de carreira do Estado e dos seus respectivos Municípios, ou do Distrito Federal, com competência para a realização do lançamento tributário ou julgamento tributário” (PLP 108/2024, art. 108 c/c item 65, da exposição de motivos).

Note-se que sutil: uma análise apressada e a leitura do adjetivo “paritária” poderia levar a crer que nada estaria sendo alterado. Uma leitura mais atenta nos permite concluir que será “paritário” entre os Estados, Municípios e Distrito Federal, exclusivamente por seus servidores, sem, portanto, a participação de representantes dos contribuintes, os quais democratizam o Processo Tributário, trazendo um olhar mais próximo da sociedade para dentro do contencioso.

A quem interessa essas rupturas? Ao estado democrático de direito ou ao estado arrecadador? Tais rupturas se harmonizam com o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV), com a legalidade (CF, art. 37) e com os novos princípios tributários da transparência, justiça tributária e cooperação (CF, art. 145, §3º)?

As perguntas são reflexivas, mas a posições deste que vos escreve é clara: o PLP 108/24 está sendo gestado já eivado de diversas inconstitucionalidades – aqui, apenas se apontaram duas – e deve ser revisto pelo Congresso Nacional e pela sociedade civil o quanto antes; que não esperemos sua publicação para, só então, ser tarde demais e apenas nos restar o socorro do Poder Judiciário.


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Artigo produzido por Rodrigo Damasceno


Advogado, professor e palestrante. Graduado em Direito (Uni7), Pós-Graduado em Direito, Processo e Planejamento Tributário (Unifor), mestrando em Direito (UFC), com dezenas de cursos nas áreas tributária e fiscal. Com mais de 5 anos de experiência em Direito para empresas, especialmente na seara tributária. Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/CE.

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