Você Colunista - Coluna do dia 22/04/2025



ILEGALIDADE FLAGRANTE DO § 8º DO ART. 2º DA INSTRUÇÃO NORMATIVA SEFAZ/CE Nº 35/2024


I – EXPOSIÇÃO DA MATÉRIA

Quando da entrada, no território cearense, de mercadorias oriundas de outros Estados, adquiridas por contribuintes do ICMS, regularmente inscritos no Cadastro Geral da Fazenda (CGF), servidores da SEFAZ/CE lotados na fiscalização do trânsito de mercadorias notificam esses contribuintes, via sistema eletrônico SANFIT, a recolher o ICMS devido na entrada interestadual de acordo com a legislação tributária cearense, considerando suas diversas modalidades: ICMS ST com carga líquida do ICMS que não envolve a ST de convênios e protocolos, ICMS Antecipado, ICMS DIFAL, etc.

Os servidores lotados nos Postos de Fiscais de divisa com outros Estados, após análise das NF-e que acobertam essas entradas no território cearense, apõem no DANFE das NF-e um “Selo Fiscal de Cobrança”, que pode ser ICMS ST, ICMS DIFAL, ICMS Antecipado ou outro tipo de ICMS.

Todavia, pode ocorrer que esses servidores errem a indicação da modalidade de ICMS efetivamente devida na entrada interestadual, caso em que, nos termos da Instrução Normativa SEFAZ/CE nº 35/2024, é permitido aos contribuintes adquirentes requererem a “correção do selo fiscal de cobrança”, para que seja cobrado o ICMS correto.

O exemplo a seguir explicita melhor a questão: servidor da SEFAZ/CE apõe no DANFE da respectiva NF-e o selo fiscal de cobrança relativo ao ICMS ST com carga líquida do imposto, em vez do ICMS Antecipado, majorando, assim, o imposto que seria efetivamente devido, até por conta da aplicação da Margem de Valor Agregada (MVA). O contribuinte, uma vez notificado da cobrança, ao perceber o equívoco do servidor fazendário, solicita, então, a correção em relação à cobrança do ICMS correto, que seria o ICMS Antecipado, cujo valor é bem menor.

Entretanto, para surpresa geral, foi publicada no DOE/CE de 02.04.2025 a Instrução Normativa nº 31/2025, que alterou o § 8º do art. 2º da IN 35/2024, com a seguinte redação:

"Art. 2º

(...)

§ 8.º Não é cabível a impetração de processo administrativo de correção de registro de documentos fiscais no SANFIT após 60 (sessenta) dias contados da data de emissão do documento fiscal, caso em que deve-se observar o disposto no inciso II do § 6.º deste artigo.” (Grifamos)

Como se denota, o § 8º supra estabeleceu um prazo de 60 (sessenta) dias para o contribuinte do ICMS solicitar à SEFAZ/CE a correção da cobrança do ICMS feita por servidor fazendário quando da aposição do “Selo Fiscal de Cobrança” no DANFE da NF-e que acobertou a entrada das mercadorias no território cearense.

Com base nas premissas supra, demonstraremos, no tópico seguinte, a violação desse dispositivo a diversos princípios constitucionais, bem como o desrespeito a precedentes já consolidados dos Tribunais Superiores.


II – DA ILEGALIDADE DO § 8º DO ART. 2º DA INSTRUÇÃO NORMATIVA SEFAZ/CE Nº 25/2024

A redação conferida ao § 8º do art. 2º da Instrução Normativa SEFAZ/CE nº 35/2024, pela Instrução Normativa SEFAZ/CE nº 31/2025, ao limitar a 60 (sessenta) dias o prazo para que contribuintes do ICMS no Estado do Ceará possam impugnar, via sistema eletrônico SANFIT, a modalidade de cobrança do ICMS indicada por fiscais da SEFAZ/CE nos DANFEs das NF-e’s que acompanham mercadorias oriundas de outras unidades da Federação, viola de forma evidente o princípio da legalidade tributária, os prazos decadenciais e prescricionais previstos em lei complementar, bem como o direito constitucional à petição e à ampla defesa.

A exigência tributária em questão se dá com base na indicação feita pela SEFAZ/CE, por ocasião da entrada da mercadoria no território cearense, de modalidade específica de ICMS: ICMS ST com carga líquida do imposto, ICMS Antecipado, ICMS DIFAL, etc.

Trata-se, portanto, de procedimento de lançamento do crédito tributário relativo ao ICMS de conformidade com essas modalidades de apuração do imposto, com exigência antecipada de seu pagamento, o qual, se equivocado, gera pagamento indevido ou a maior por parte do contribuinte.

Assim, o direito de pleitear a correção do registro ou restituição do valor pago indevidamente, quando for o caso, é matéria regulada pelo Código Tributário Nacional (CTN), que estabelece o prazo de 5 (cinco) anos para esse fim:

"Art. 168. O direito de pleitear a restituição de tributo prescreve em cinco anos, contados:

I – nas hipóteses dos incisos I e II do art. 165, da data da extinção do crédito tributário."

Cabe apontar, aqui, que a própria jurisprudência do STJ é clara ao definir que:

“O prazo para o contribuinte pleitear a restituição do tributo sujeito a lançamento por homologação é de cinco anos, conforme dispõe o art. 168, inciso I, do CTN.”
(STJ, AgInt no REsp 1.907.831/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 17/02/2021)

A limitação imposta pela Instrução Normativa nº 31/2025, ao estabelecer que não se admite o processo de correção do selo fiscal após 60 dias da emissão da nota fiscal, restringe indevidamente o exercício do direito à revisão de crédito tributário e restituição do indébito, usurpando competência legislativa reservada à lei em sentido formal, conforme o art. 97 do CTN:

“Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

(...)

II – a majoração de tributos, ou sua redução;

(...)

VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.”

De ressaltar que o caso em questão não se trata de prazo de vencimento do ICMS, o que até poderia ser objeto de decreto regulamentar, conforme admitido pela jurisprudência do STF (RE 212.209, Rel. Min. Ilmar Galvão), mas de prazo para exercício de direito do contribuinte de impugnar cobrança fiscal equivocada, com repercussão sobre a própria constituição e validade do crédito tributário.

Por isso, a limitação imposta por Instrução Normativa é absolutamente ilegal e inconstitucional.
Nesse sentido, os seguintes precedentes do STJ:

"A administração tributária não pode, por ato infralegal, limitar prazo previsto em lei para restituição de tributos."
(STJ, AgRg no REsp 1.112.904/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 03/12/2010)

“A alteração de critérios de cálculo e prazos de restituição por meio de ato administrativo normativo viola o princípio da legalidade.” (STJ, REsp 1.179.607/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 22/06/2010)

Por fim, há ainda a violação ao direito constitucional de petição e ampla defesa, previsto no art. 5º, incisos XXXIV, alínea "a", e LV, da Constituição Federal, uma vez que o contribuinte é impedido de impugnar cobrança tributária arbitrária, indevida ou maior do que a devida após prazo ínfimo de 60 dias, sem qualquer amparo legal para tanto.


III – Gravidade da Limitação em Situações de Isenção, Imunidade ou ICMS ST DE CONVÊNIOS OU PROTOCOLOS DO CONFAZ

Ainda mais grave é o efeito prático da limitação imposta pela Instrução Normativa SEFAZ/CE nº 35/2024, em seu § 8º do art. 2º, com a alteração da Instrução Normativa SEFAZ/CE nº 31/2025: ela impede que o contribuinte, mesmo em situações de total inexigibilidade do imposto, possa demonstrar esse fato ao Fisco estadual no prazo de 5 (cinco) anos.

Isso porque, em inúmeras hipóteses, as mercadorias ingressam no Estado do Ceará acobertadas por operações isentas, não tributadas (não incidência, imunidade, suspensão ou diferimento do imposto) ou, ainda, sujeitas ao regime de substituição tributária com retenção do imposto na origem, nos termos de convênios e protocolos firmados entre os Estados e editados pelo CONFAZ, conforme autorizado pelo art. 150, § 7º da Constituição Federal e regulado pela Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir).

É plenamente possível, e de fato ocorre com frequência, que servidores da SEFAZ/CE atribuam selo fiscal de cobrança indevido a essas operações, gerando exigência de ICMS:

  • em duplicidade, quando o ICMS já foi retido por substituição tributária do convênios e protocolos;
  • indevida, quando a operação é isenta ou não tributada;
  • sem previsão legal, quando se trata de retorno ou transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Em todos esses casos, impedir o contribuinte de impugnar a exigência após 60 dias, mesmo se não tiver pago o tributo (mas queira evitar o pagamento indevido ou a maior ou, então, o ajuizamento de execução fiscal), é flagrante violação ao direito de petição, de defesa e à própria legalidade tributária.

Veja-se o seguinte precedente do STF:

“A vedação à restituição de tributo indevidamente recolhido, quando sujeito à substituição tributária, ofende os princípios da não cumulatividade, da legalidade e da vedação ao enriquecimento sem causa do Estado.”
(STF, RE 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 24/10/2016 – Tema 201 da Repercussão Geral)

Ademais, a Constituição Federal veda a criação de obstáculos desproporcionais ao exercício do direito de impugnar exigências tributárias ilegais.

A criação, por ato infralegal, de um prazo exíguo de 60 dias para isso, sem amparo em lei formal e em desacordo com os prazos do CTN, é desarrazoada e desproporcional, afrontando o princípio do devido processo legal material (CF/1988, art. 5º, inciso LIV) e a jurisprudência do STF a seguir:

"A Fazenda Pública não pode restringir, por ato administrativo, direito assegurado em lei ao contribuinte." (STF, RE 226.523/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 10-03-2000)

IV - CONCLUSÃO

Em síntese, ante todo o acima exposto, concluímos pelo seguinte:

  • Princípio da Legalidade (CF/88, art. 150, inciso I e art. 5º, inciso II): tributo só pode ser exigido ou modificado por lei; Instrução Normativa não tem esse poder.
  • Art. 97 do CTN: somente lei pode dispor sobre matéria tributária relativa a: fato gerador, base de cálculo, sujeito passivo, decadência e crédito tributário.
  • Art. 168 do CTN: o contribuinte tem 5 anos para pleitear restituição de tributos pagos indevidamente ou em valor maior do que o devido.
  • Ausência de respaldo legal na Lei nº 18.665/2023 (ICMS/CE) e na LC nº 87/1996 (Lei Kandir).
  • Ato administrativo não pode contrariar norma legal sob pena de nulidade.
  • A concessão do prazo de 60 dias para o contribuinte contestar o equívoco do servidor fazendário, quando da aposição do “Selo Fiscal de Cobrança” se torna mais grave ainda quando nos deparamos com situações em que as operações relacionadas com o ICMS são isentas ou não tributadas (isenta, imune, não incidente, suspensão ou diferimento do imposto, retorno ou transferência de mercadorias, etc.), pois que tal exigência é totalmente indevida.

Na verdade, com as disposições do § 8º do art. 2 º da IN 35/2024, ao limitar a 60 dias o prazo para que o contribuinte requeira a correção do selo fiscal atribuído pela SEFAZ/CE, o que está em jogo é:

  • Cerceamento ao direito à correção de erro material cometido pelo próprio Fisco;
  • Mitigação, sem base legal, do prazo para reconhecimento de pagamento indevido ou a maior, que é de 5 anos, nos termos do art. 168, inciso I, do CTN;
  • Limitação do exercício do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, incisos XXXIV e LV, da CF/88).

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Artigo produzido por José Ribeiro Neto


Advogado Tributarista e Penal-Tributarista, Auditor Fiscal da SEFAZ/CE aposentado e Mestre em Direito Constitucional. Foi Vice-Presidente e Presidente da 2ª Câmara de Julgamento do CONAT/CE, além de Julgador de Primeira e Segunda Instância. É autor dentre outros, dos seguintes livros: “Regulamento do ICMS/CE Integralmente Comentado”, “

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