Você Colunista - Coluna do dia 13/11/2023
A Transferência de bens entre matriz e filiais e o Convênio ICMS 174, de 31 de outubro de 2023.
Após infindáveis conflitos acerca da (não) incidência de ICMS sobre a transferência de mercadorias e bens entre estabelecimentos do mesmo titular (matriz e filiais), será que a celeuma está chegando ao fim?
Contextualizando, de um lado, o Fisco entendia que a simples circulação da mercadoria configuraria o fato gerador do ICMS, mesmo que se tratasse de transferências entre o próprio contribuinte. O argumento encontrava expresso amparo legal, no art. 12, I, da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir).
Noutro lado, os contribuintes defendiam que não basta a mera circulação física da mercadoria para caracterizar o fato gerador do ICMS, sendo essencial que haja a circulação jurídica do bem e, portanto, a efetiva transferência de propriedade.
Nesse sentido, há muito, ensinava Roque Antônio Carrazza[1]:
[...] é bom esclarecermos desde logo, que tal circulação só pode ser jurídica (e não somente física). A Circulação Jurídica pressupõe a transferência (de uma pessoa para outra), de posse ou de propriedade de mercadoria. Sem a mudança de titularidade da mercadoria, não há se falarem tributação por meio do ICMS. Daí extrai-se que a circulação de mercadorias prevista na hipótese de incidência do ICMS é determinada pela tradição, conceito de direito civil que preceitua: Art. 1.267. A propriedade da coisa não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Ou seja: A efetiva entrega da mercadoria ao comprador.
Ou seja, para ensejar o fato gerador do ICMS, tem-se como requisito necessário aquela circulação de mercadoria que configura ato mercantil ou transferência da titularidade do bem, independentemente de os estabelecimentos estarem localizados na mesma unidade federativa ou em estados-membros diferentes.
O posicionamento acima não é novo, já havendo entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça (verbete nº 166), oriundo da década de 90, que assim dispõe:
STJ, Súmula 166. Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.
Mais recentemente, em julgamento sob a sistemática da Repercussão Geral (Tema 1.099) e com trânsito em julgado em junho de 2022, o Supremo Tribunal Federal se posicionou de igual modo:
STF, Tema 1.099. Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.
A despeito da uniformização da jurisprudência acima, em ambos os Tribunais Superiores, com observância obrigatória aos demais juízes e tribunais (CPC, art. 927, III, e IV), foi necessária a ratificação do entendimento via Ação Declaratória de Constitucionalidade, para forçar o cumprimento pelos Estados (ADC nº 49).
Assim, em 19 de abril de 2021, por unanimidade, o STF julgou improcedente o pedido formulado na ADC, declarando, ao revés, a inconstitucionalidade do artigo 12, I, no trecho "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular", da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir).
Irresignado com a decisão, o Governador do Estado do Rio Grande do Norte, parte autora na ação, opôs embargos de declaração, estes julgados exatamente 2 anos após, em 19 de abril de 2023, onde o STF determinou a modulação de efeitos da decisão, a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até 04/05/2021.
Embora a atribuição de efeitos prospectivos tenha se tornado praxe em matéria tributária, inicialmente, pelo STF, mas já com indícios de uso pelo STJ, o que é passível de inúmeras críticas, isto é matéria para outras linhas.
Nestas, convém abordar a repercussão da parte final do precedente, ao expor que os Estados possuem até 31/12/2023 para que “disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular” sob pena de ficar “reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos”.
Foi nesse cenário que o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) editou o Convênio ICMS nº 174, em 31 de outubro de 223, justamente para dispor sobre a remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, bem como sobre o direito ao crédito.
A data também não é uma coincidência. Um dia antes – 30 de outubro de 2023 – o STF negou provimento a novos embargos de declaração que foram opostos, o que leva a crer que a decisão firmada não mais será alterada, alcançando, pois, os efeitos da coisa julgada.
Desse modo, os principais pontos abordados no Convênio consistem na previsão de que, na remessa interestadual de bens e mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, a transferência do crédito de ICMS será:
a) obrigatória;
b) do estabelecimento de origem para o estabelecimento de destino;
c) realizada a cada remessa, mediante consignação do respectivo valor na Nota Fiscal eletrônica (NF-e) que a acobertar;
d) O ICMS a ser transferido corresponderá às alíquotas interestaduais, sobre os valores dos bens e mercadorias conforme critérios definidos no Convênio.
Ainda, dispõe o Convênio que O ICMS a ser transferido será lançado: a) a débito na escrituração do estabelecimento remetente, mediante o registro do documento no Registro de Saídas; b) a crédito na escrituração do estabelecimento destinatário, mediante o registro do documento no Registro de Entradas.
Agora, voltemos ao questionamento que iniciou estas linhas, será que a celeuma está chegando ao fim?
Infelizmente, as disposições contidas no Convênio extrapolam o teor do que fora decidido pelo STF, haja vista que a transferência de créditos era defendida como uma faculdade aos contribuintes, como algo lícito, mas não como algo impositivo, a ser “positivado” como obrigatório pelo Convênio, até mesmo porque há empresas que possuem muitos débitos na origem e poucos no destino, não fazendo sentido transferir os créditos.
As aspas acima não são desprovidas de fundamento, pois remanesce a crítica de que a regulamentação adequada seria aquela efetivada via Lei Complementar, nos termos dos arts. 146, III, “a” e “b”, e 155, §2º, XII, ambos da Constituição Federal.
Não se pode esquecer que o mesmo STF já entendeu pela impossibilidade de cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS (DIFAL), na forma do Convênio nº 93/2015, justamente porque restava ausente Lei Complementar disciplinadora. O cenário só foi corrigido pela Lei Complementar nº 190, publicado em 05/01/2022, e que gerou uma série de outros conflitos.
Portanto, mais adequado seria que o Congresso Nacional sanasse a lacuna, pela edição de Lei Complementar, em observância à legalidade estrita que rege o direito tributário. Caso negativo, o contencioso tributário seguirá ativo, buscando novas soluções pelo Poder Judiciário.
Fato é que, às empresas que realizam tais operações e que não optarem pelo litígio e/ou não conseguirem decisões favoráveis que afastem o Convênio ICMS nº 174/223, torna-se de suma importância o conhecimento das regras firmados no Convênio, principalmente porque já passam a valer a partir de 1º de janeiro de 2024.
[1] CARRAZZA. Roque Antônio. ICMS. 10 ed. Malheiros: São Paulo, 2005.
Artigo produzido por Rodrigo Damasceno
Advogado, professor e palestrante. Graduado em Direito (Uni7), Pós-Graduado em Direito, Processo e Planejamento Tributário (Unifor), mestrando em Direito (UFC), com dezenas de cursos nas áreas tributária e fiscal. Com mais de 5 anos de experiência em Direito para empresas, especialmente na seara tributária. Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/CE.