Preço de transferência: Receita faz reuniões em meio a temor de setores

Seguem em curso as conversas entre Receita Federal e representantes dos setores que serão afetados pelas mudanças nas regras de preço de transferência. Apesar de elogiarem a disposição da Receita para o diálogo, porém, companhias veem com preocupação alguns pontos que serão alterados, como o sistema de comparação de operações para cálculo dos tributos devidos. Além disso, destacam a necessidade de melhoria na relação entre fisco e contribuintes para que a nova sistemática seja efetiva.

Companhias norte-americanas que atuam no Brasil estão entre as principais interessadas na alteração do modelo atual. Isso porque uma mudança recente promovida pelo governo dos Estados Unidos impossibilitou o creditamento, no país, referente ao Imposto de Renda pago no Brasil. As companhias norte-americanas veem na alteração dos preços de transferência uma possibilidade de voltar a usufruir dos créditos.

As alterações na metodologia de preço de transferência já vinham sendo estudadas pela Receita desde 2018, e são vistas como obrigatórias para a entrada do Brasil na OCDE. Isso porque o sistema utilizado por aqui para o cálculo do IRPJ e da CSLL incidente em operações entre partes relacionadas localizadas em países distintos é muito diferente da metodologia utilizada pela OCDE.

Após apresentar as diretrizes do novo sistema em abril, a Receita está em fase de conversas com as companhias que serão impactadas pelas alterações nos preços de transferência, como multinacionais e empresas de auditoria. Segundo Cláudia Pimentel, coordenadora-geral de tributação da Receita, a ideia é apresentar as alterações ao ministro da Economia, Paulo Guedes, em julho, para, conforme avaliação política da pasta, enviar ao Congresso o projeto de lei sobre o tema até o final do ano.

A Receita demonstraram preocupação com os chamados “comparáveis”. O princípio arm’s length, utilizado no cálculo dos preços de transferência no modelo da OCDE, tem como base a comparação entre operações realizadas entre partes relacionadas e operações entre partes independentes. Desta forma é possível chegar o mais próximo possível do real valor da operação, evitando manobras que reduzam a base de cálculo dos tributos incidentes sobre a renda ou permitam a transferência indevida de lucros entre jurisdições.

De acordo com Bruna Camargo Ferrari, mestre em direito tributário pela FGV, há uma preocupação com os critérios para a formação da base de dados de comparáveis. “Qual a base de dados que vamos partir? É uma base de dados das empresas no Brasil? De empresas com operações na América Latina? Em outros países? Vamos importar bases de dados? E como a Receita vai convalidar esse passo a passo?”, questiona.

Gustavo Carmona, sócio líder de ITTS – International Tax & Transaction Services (Tributação Internacional e Transações) da EY no Brasil, por outro lado, lembra que a questão em torno da base de dados não é exclusivamente brasileira. “No fim do dia estamos falando de adotar regras que o mundo inteiro adota”, diz. 

Ainda sobre o tema, Cláudia Pimentel afirma que há uma preocupação com a documentação que será exigida para a comprovação das operações feitas. Sobre esse ponto, ela diz que a exigência será “alinhada com o que se exige internacionalmente”.

Relação fisco-contribuinte

Outra preocupação das empresas está relacionada à relação entre o fisco e os contribuintes, fundamental, por exemplo, para a realização de acordos prévios. De acordo com a experiência internacional, em alguns casos as empresas podem optar por apresentar com antecedência os termos da operação a ser realizada, para, juntamente à autoridade fazendária, delinear como se dará a tributação.

Neste ponto, o medo reside no fato de, atualmente, não existir um espaço de diálogo entre contribuintes e Receita no qual haja celeridade e confiança.

Como exemplo, Bruna Ferrari cita a sistemática atual de consultas à Receita, que demoram a ser respondidas. Além disso, há sempre o temor, por parte dos contribuintes, de que a resposta seja invariavelmente favorável à tributação. “[Para a realização de acordos prévios o contribuinte] vai ter que abrir uma grande quantidade de informação sobre a sua companhia, ter um relacionamento com o fisco que não é só uma reunião, tem que ir lá e explicar, quantificar, qualificar os dados. E tem essa questão da demora. Hoje não há uma solução de consulta com menos de um ano”, afirma.

Ainda, a advogada questiona como serão aplicados os chamados safe harbours pelo Brasil. O mecanismo cria regras especiais relacionadas ao cálculo dos preços de transferência para setores específicos, para determinadas atividades ou para tipos ou valores de operações. A possibilidade foi citada por Cláudia Pimentel em abril, quando a Receita e a OCDE apresentaram os planos para as alterações legislativas no Brasil, mas não foram dados maiores detalhes.

Bruna Ferrari considera que os safe harbours e os acordos prévios são mecanismos necessários por simplificarem o cálculo dos preços de transferência. “Se simplesmente partirmos do que temos hoje para as regras da OCDE sem esses regimes de simplificação já previstos vamos para uma situação de aumentar demasiadamente o contencioso, ao meu ver.”

Sobre o tema, Gustavo Carmona acredita que a relação entre a Receita e os contribuintes tem melhorado. Para ele, preocupa saber como a nova legislação sobre preços de transferência tratará as reestruturações societárias, evitando a tributação indevida.

Creditamento internacional

As discussões sobre preço de transferência no Brasil ganharam novos tons com a decisão tomada no fim do ano passado pelo governo dos Estados Unidos de permitir o creditamento pelo imposto pago na fonte apenas nos casos em que o sistema tributário do país de origem for similar ao norte-americano. Com a mudança, companhias temem pela bitributação, já que não será mais possível compensar, nos Estados Unidos, o Imposto de Renda retido no Brasil.

Empresas norte-americanas que atuam no Brasil começaram a ver na alteração dos preços de transferência um caminho para começar a mudar o cenário e voltar a aproveitar os créditos. Especialistas apontam que, caso não haja nenhuma alteração, os efeitos da restrição deverão ser sentidos a partir do final de 2022 ou em 2023, podendo gerar aumento de preços.

De acordo com Luís Flávio Neto, diretor e coordenador do mestrado profissional em Direito Tributário Internacional e Comparado do IBDT e sócio do KLA Advogados, para esse público a alteração nos preços de transferência é um caminho, porém a volta do creditamento viria após mudanças mais profundas no sistema tributário brasileiro. “É preciso alterar a regra de preço de transferência, a legislação brasileira sobre retenção na fonte e limitações de dedutibilidade de pagamento de royalties.”

Os royalties são apontados como um ponto problemático nesta equação. Isso porque, pelas regras atuais, há uma ampla tributação sobre a remuneração à empresa estrangeira pela utilização de uma patente, uma marca ou um software, por exemplo.

Para Gustavo Carmona, uma solução seria trazer a adequação na tributação dos royalties para dentro da legislação sobre preço de transferência. “O que precisamos é que junto com a mudança da regra de preço de transferência seja feita a revogação de todo o sistema que hoje trata de royalties.”

Por fim, outro fator que preocupa as empresas é o timing para envio do projeto ao Congresso, já que 2022 é um ano eleitoral. “Será que dá tempo de apresentar uma legislação bem discutida e ser aprovada neste ano? É uma grande dúvida e um grande desafio”, sintetiza.




Fonte: Jota 

Data: 15/06/2022