Você Colunista - Coluna do dia 28/06/2024



Novas Diretrizes do Processo Administrativo Fiscal: Análise das Reformas e Desafios


Com o novo sistema tributário em fase de implantação, o constituinte derivado incluiu no rol de exigências que o processo administrativo fiscal do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, seja disciplinado por lei complementar (CF, art. 156-A, §5º, VII).

Já o art. 156-B, III e §2º, V, da Constituição, prevê que o Comitê Gestor do IBS decidirá o contencioso administrativo, sem prejuízo de que a fiscalização, o lançamento, a cobrança e a representação judicial sejam realizados pelas repartições atualmente existentes, sem prejuízo de delegação ou compartilhamento de competências.

Contudo, antes mesmo da reforma ou da futura lei a ser publicada, o processo tributário já vinha passando por mudanças nas mais diversas searas.

Em setembro de 2023, foi publicada a Lei nº 14.689/2023, que promoveu alterações no processo administrativo federal.

O ponto mais debatido, certamente, girou em torno da volta do voto de qualidade, até então abolido pela Lei nº 13.988, de 2020, segundo a qual “Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972 , resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”.

A nova Lei, portanto, revogou tal dispositivo.

Na realidade, buscou-se chegar ao meio termo: “nem cá”, “nem lá”, ou seja, nem os contribuintes serão plenamente atendidos – pela continuidade da extinção do voto de qualidade – nem o fisco será plenamente atendido – pelo retorno do voto de qualidade indistintamente.

A solução que se adotou, pois, foi o retorno do voto de qualidade, é verdade, mas com atenuações, a saber: em casos de empate, haverá i) exclusão de multas; ii) cancelamento da representação fiscal para os fins penais; iii) exclusão de juros de mora, caso o contribuinte pague o débito, com possibilidade de parcelamento; iv) possibilidade de pagamento com prejuízo fiscal, base de cálculo negativa da CSLL e precatórios.

É possível, ainda, a propositura de acordo de transação tributária específica e a discussão do crédito tributário em juízo, sem a necessidade de apresentação de garantia.

Para além dessas mudanças, a referida Lei nº 14.689/2023 trouxe outros pontos interessantes, como o novo tratamento dado às multas qualificadas, reduzindo-as em casos de sonegação, fraude ou conluio (de 150% para 100%) e de reincidência em tais práticas (de 225% para 150%).

Relembre-se que a modificação poderia ter sido ainda mais benéfica, pois o Presidente de República vetou dispositivo que previa a não aplicação da penalidade acima quando não fosse configurada, individualizada e comprovada a conduta dolosa, ou ainda quando houvesse sentença penal de absolvição com apreciação de mérito referente à imputação tributária. O veto não foi rechaçado pelo Congresso Nacional.

Posteriormente, em 21 de dezembro de 2023, houve a publicação da Portaria MF nº 1.634/2023, que aprovou o novo Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

Analisando o normativo, também se faz possível perceber mudanças positivas, como a majoração do tempo máximo de mandato dos conselheiros (de 6 para 8 anos), ressalvado o prazo máximo de 12 anos para Presidente e Vice-Presidente de Câmara, bem como de Presidente e Vice-Presidente de Turma.

A relevância se encontra porque, sendo o CARF órgão julgador de demandas extremamente complexas, um maior tempo tende a promover mais experiência e maturidade no desempenho das funções dos conselheiros, sem mencionar a otimização dos deveres decisórios de uniformidade, estabilidade, integridade e coerência (CPC, art. 926), o que harmoniza com o princípio da segurança jurídica.

Destaque-se, também, a previsão de sobrestamento obrigatório “nos casos em que houver acórdão de mérito ainda não transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal Federal e que declare a norma inconstitucional ou, no caso de matéria exclusivamente infraconstitucional, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça e que declare ilegalidade da norma” (RICARF, art. 100).

Antes, não havia essa hipótese de sobrestamento, mas apenas observâncias às decisões vinculantes do STF e STJ, após o trânsito em julgado.

Trata-se de um passo importante, mas que também poderia ter ido além, visando a aplicação do entendimento firmado mesmo antes do trânsito em julgado – e não o sobrestamento.

Aliás, "O Superior Tribunal de Justiça, seguindo orientação do Supremo Tribunal Federal, possui o entendimento de que é desnecessário aguardar o trânsito em julgado para a aplicação do paradigma firmado em sede de recurso repetitivo ou de repercussão geral" (STJ, AgInt no AREsp 2.121.633/SP, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 15.3.2023).

Nesse sentido, inclusive, em recentíssima decisão, o CARF se posicionou pela não incidência de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e de Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre créditos presumidos de ICMS.

Relembre-se que, sobre os créditos presumidos de ICMS, o STJ apenas tem precedente histórico firmado no EREsp 1.517.492, em 2018. Ocorre que tal precedente, por não ter sido proferido em sede de julgamento de recursos repetitivos, embora persuasivo, não é vinculante ao CARF.

O STJ, é verdade, julgando o Tema Repetitivo 1.182, em 2023, firmou precedente vinculante sobre a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, mas consignou que expressamente estava tratando de benefícios como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, imunidade, diferimento, entre outros, mas não de crédito presumido.

Nesse contexto, apesar da inegável sede arrecadatória que o Poder Executivo Federal tem amplamente demonstrado – seja em entrevistas, palestras, discursos em tribunas etc – decerto que houve um caráter positivo nas alterações apontadas.

Por outro lado, no âmbito do processo administrativo tributário no Estado do Ceará, as modificações implementadas não trazem igual otimismo.

Inicialmente, a Lei nº 18.185, de 29 de agosto de 2022, que alterou o regramento do contencioso administrativo tributário, sob o pretexto de que o processo administrativo tributário será regido pelo princípio da celeridade, reduziu os prazos de defesa do contribuinte (impugnação e recursos), de 30 para 20 dias, contudo, fez questão em positivar que “A Procuradoria-Geral do Estado gozará de prazo em dobro para interposição de recurso extraordinário e contrarrazões” (art. 52, §3º).

Retira do lado hipossuficiente na relação fisco-contribuinte, mas positiva o dobro do prazo para a PGE.

Ademais, reafirmou a vinculação a decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, mas se omitiu quanto à igualmente importante observância às decisões firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça, sob o rito de recursos repetitivos.

Quanto ao mandato dos conselheiros, o tempo típico é de 2 anos (outrora já fora 3 anos), postura contrária à importante ampliação do mandato destacado na seara federal.

Diga-se de passagem, por fim, que também houve sérias restrições ao acesso à prova pericial, à admissibilidade do recurso extraordinário (recurso equivalente ao recurso especial federal), e à liberdade no exercício da função, pela inclusão de dispositivo destinado a “representar administrativamente contra agentes do Fisco que, por ação ou omissão, dolosa ou culposa, devidamente verificadas no processo administrativo tributário, causarem prejuízo ao erário” (art. 27, IV).

Após, mudanças severas também ocorrem pela Lei 18.665, publicada dia 29 de dezembro de 2023, sob o título de “Nova Lei do ICMS do Estado do Ceará”.

Aqui, cabe citar pertinente crítica do Prof. Hugo de Brito Machado Segundo, ao apontar que a Lei, embora possua quase duzentos artigos, fora aprovada “em regime de urgência, em poucos dias e com o Natal no meio deles”, o que vai de encontro aos princípios da transparência e cooperação, elencados como novos princípios tributários pela Reforma (art. 145, §3º), sendo um dos fatores submetidos ao Supremo Tribunal Federal, pelo protocolo da ADI 7.716/CE, pugnando pela inconstitucionalidade da supracitada lei.

No tocante ao processo administrativo em si, houve uma majoração de grande parte das penalidades, como para a infração de deixar de emitir o Manifesto Eletrônico de Documentos Fiscais (de 200 UFIRCEs para 400UFIRCEs); para quando se constatar a inexistência de livros fiscais ou contábeis quando exigidos pela legislação (de 600 UFIRCEs para 5.000 UFIRCEs); ou ainda em caso de extravio, perda ou inutilização de livro fiscal ou contábil (de 800 UFIRCEs para 5.000 UFIRCEs).

Há penalidades, por exemplo, em casos de operação simulada, com multa equivalente a 40% do valor da operação (se o ICMS é 20% sobre o valor da operação, temos uma multa de 200%?), para ficar em apenas alguns exemplos.

As constatações acima levam à conclusão que, a nível federal, houve um equilíbrio na reintrodução do voto de qualidade, mantendo a proteção ao contribuinte e ao fisco, e aprimoramentos no funcionamento do CARF que promovem maior estabilidade nas decisões.

No entanto, no âmbito estadual, especialmente no Ceará, algumas reformas parecem contrárias aos princípios da transparência e cooperação, com prazos reduzidos para defesa do contribuinte e aumento das penalidades, além de processos legislativos acelerados que comprometem a participação e o debate público.

O receio é que as incertezas do processo tributário também recaiam sobre a lei complementar exigida pela Reforma Tributária para tratar da matéria.

Importante relembrar que, sendo o IBS e a CBS irmãos gêmeos (mesmos fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de incidência, sujeitos passivos, regimes específicos ou diferenciados, regras de não cumulatividade e creditamento), como imaginar conflitos aparentemente semelhantes, sendo resolvidos por órgãos com competências distintas?

Explica-se: adotado o projeto de manter o CARF, que incluiria em sua competência exercer o controle de legalidade no que tange à CBS, e criar um novo órgão, subnacional, que resolveria o contencioso administrativo relativo ao IBS, em substituição ao CAT (Município de Fortaleza) e CONAT (Estado do Ceará), por exemplo.

Imagine-se que um contribuinte entenda pela possibilidade de tomada de crédito sobre determinada despesa. Já no âmbito de eventual fiscalização, a autoridade responsável pelo IBS poderia entender contrariamente ao crédito, de modo a glosá-lo. Por sua vez, a autoridade responsável pela CBS pode homologar o mesmo crédito.

Noutro cenário, ainda que ambas as autoridades glosassem o crédito, o órgão de julgamento do IBS poderia manter a glosa, enquanto o CARF poderia afastá-la. O mesmo se terá com soluções de consulta.

Essa natural possibilidade de existência de posicionamentos e decisões conflitantes, por si só, distorceria o igual tratamento desejado aos novos tributos citados.

E mais: pensando que o conflito seja levado ao Poder Judiciário – o que é esperado – teremos decisões dos TJs sobre o IBS e decisões dos TRFs sobre a CBS, ampliando as distorções, que apenas seriam solucionadas no âmbito dos Tribunais Superiores, STJ e STF.

Eis um relevante desafio a ser pensado pelo legislador, para que não se rompa com um sistema ainda em vias de ser posto em prática, tampouco com a uniformidade e coerência desejadas à teoria das decisões judicias, que extrapola o campo tributário.

Espera-se, ainda, que as mudanças trazidas pela lei complementar que regular o processo administrativo fiscal apresentem avanços quanto à simplicidade, transparência, justiça tributária e cooperação, nos termos dos novos princípios proclamados pela Reforma Tributária, e não retrocessos a direitos dos contribuintes, fomentando a ânsia por arrecadação que não condiz com as balizas do processo administrativo tributário.


Foto do Autor

Artigo produzido por Rodrigo Damasceno


Advogado, professor e palestrante. Graduado em Direito (Uni7), Pós-Graduado em Direito, Processo e Planejamento Tributário (Unifor), mestrando em Direito (UFC), com dezenas de cursos nas áreas tributária e fiscal. Com mais de 5 anos de experiência em Direito para empresas, especialmente na seara tributária. Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/CE.

Colunas recentes