O estoque de processos dobrou entre 2011 e 2015 e disparou a partir de 2020, com a limitação de julgamentos devido à Covid-19, chegando a R$ 1,1 trilhão no fim do ano passado. O tempo médio entre o lançamento do auto de infração e o julgamento em última instância no tribunal é de quase nove anos.
Mesmo quando as empresas perdem, o índice de pagamento é baixo. Entre 2015 e 2019, apenas R$ 4,4 bilhões foram pagos após julgamento no Carf, enquanto outros R$ 153,3 bilhões foram inscritos na Dívida Ativa, segundo dados obtidos pela LAI (Lei de Acesso à Informação).
As companhias preferem continuar a disputa na Justiça, onde o impasse se arrasta por mais tempo. Nesse intervalo, ou a dívida é anulada, ou o Legislativo aprova um novo parcelamento de débitos que beneficia os devedores.
Em 2020, o Congresso Nacional abreviou esse percurso em favor dos contribuintes. Os parlamentares derrubaram o chamado voto de qualidade, que dava ao governo o voto de desempate nos julgamentos do Carf.
A mudança levou a União a perder um volume maior de disputas no Carf, sem que tivesse o mesmo direito de recorrer à Justiça.
Dados reunidos pelo Ministério da Fazenda após pedido da Folha via LAI, em janeiro, evidenciam a inversão.
Em 2019, 82% dos R$ 74,1 bilhões em créditos cujo julgamento empatou foram mantidos, em decisão favorável à Fazenda. Apenas 18% caíram, beneficiando contribuintes (o presidente, indicado pela Receita, é quem detém o voto de qualidade e pode decidir a favor de qualquer um dos lados).
Em 2020, após a derrubada do voto de qualidade, 41% dos R$ 39,5 bilhões em créditos julgados por essa regra foram anulados em favor dos contribuintes. A proporção subiu a 81% em 2021, atingindo 98% em 2022. Só no ano passado, dos R$ 25,4 bilhões julgados por desempate, R$ 24,8 bilhões foram extintos graças à nova lei.
O voto de qualidade só deixou de valer entre 2020 e 2022 para recursos em relação a auto de infração, ou seja, processo com exigência do crédito tributário. Para outros casos, como compensações, ele continuou existindo.
A retomada do voto de qualidade, via medida provisória, foi uma das primeiras ações anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), na tentativa de equacionar a situação. Após reação negativa dos empresários, o governo negociou um acordo com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para evitar uma derrota na votação da MP pelo Congresso.
Técnicos ouvidos reservadamente pela Folha, porém, afirmam que a derrubada do voto de qualidade apenas agravou uma situação que já era problemática no Carf - e que guarda relação com a estrutura histórica do tribunal, com a complexa estrutura tributária do país e com a falta de padrão nas fiscalizações dos auditores.
Desde 1931, o Carf tem composição paritária: metade dos conselheiros são indicados pelo governo federal e a outra metade por entidades que representam os contribuintes - sobretudo associações empresariais.
O desenho é considerado uma jabuticaba pelo atual governo e também por técnicos da área, uma vez que o tribunal analisa o processo administrativo de cobrança. A visão é que discordâncias de mérito deveriam ser levadas à Justiça.
O auditor fiscal da Receita Ricardo Fagundes da Silveira, membro do conselho deliberativo do IJF (Instituto Justiça Fiscal), estudou a efetividade do Carf em sua tese de doutorado, em 2019.
Em artigo recente, ele analisou o funcionamento de contenciosos tributários de 27 países a partir de dados da publicação britânica The Law Review. Em 24 deles, todos os julgadores são vinculados à administração tributária, e dois permitem membros independentes (mas sem ligação com empresas).
Um único país, a Noruega, prevê a indicação de conselheiros por associações empresariais. O modelo, porém, é bem distinto do Brasil: o processo é analisado em instância única, dura no máximo dois anos e exige o recolhimento prévio do tributo alvo de questionamento.
Em 2015, o Carf ganhou os holofotes com a Operação Zelotes, que apurou um esquema de venda de votos para favorecer grandes empresas em julgamentos bilionários. A investigação provocou mudanças profundas na organização do órgão.
Os processos passaram a ser distribuídos por sorteio, e os conselheiros não podiam mais advogar durante o período em que exerciam o mandato.
A reorganização levou a um endurecimento das decisões, e os contribuintes passaram a reclamar dos reveses. Técnicos do governo, por sua vez, atribuem a ela a pressão que se sucedeu para mexer no voto de qualidade.
O Congresso fez sucessivas investidas para alterar o mecanismo, mas só obteve sucesso em 2020. Os parlamentares aproveitaram o texto de uma MP (medida provisória) enviada no ano anterior e incluíram a emenda que derrubava o voto de qualidade. A lei foi sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
"Isso vem no conjunto de um movimento mais amplo de subtributação dos super-ricos e supertributação dos pobres e da classe média", critica o presidente do Sindifisco Nacional (Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal), Isac Falcão, que defende alterações no modelo. Segundo ele, grandes empresas têm uma força política "desproporcionalmente maior" que os demais contribuintes.
Uma mudança no comando do tribunal também é apontada por auditores e diferentes técnicos do governo como um fator que contribuiu para a ampliação das perdas da União.
O presidente tem função gerencial e não costuma votar nos julgamentos. Isso mudou quando o Carf passou a ser presidido pelo auditor fiscal Carlos Henrique de Oliveira, indicado pela União em maio de 2022.
Segundo relatos de auditores e acórdãos de decisões analisados pela Folha, Oliveira participou de julgamentos em diferentes seções (turmas especializadas por tipos de tributo), muitas vezes para votar a favor do contribuinte - inclusive dispensando a necessidade do desempate.
Em um dos casos, Oliveira votou pela possibilidade de uma empresa contabilizar créditos tributários por gastos com frete entre centros de distribuição e lojas da própria companhia. Na prática, a decisão desonerou o contribuinte do pagamento de parte de seus tributos.
Fonte: O Tempo