Você Colunista - Coluna do dia 16/10/2025
Inaplicabilidade do Split Payment na Construção Civil – Risco de Colapso Financeiro no Setor
I – EXPOSIÇÃO DA MATÉRIA
O caput do art. 31 da Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, que regulamentou a Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, que altera o Sistema Tributário Nacional, a denominada “Reforma Tributária”, determina o seguinte:
“Art. 31. Nas transações de pagamento relativas a operações com bens ou com serviços, os prestadores de serviços de pagamento eletrônico e as instituições operadoras de sistemas de pagamentos deverão segregar e recolher ao Comitê Gestor do IBS e à RFB, no momento da liquidação financeira da transação (split payment), os valores do IBS e da CBS, de acordo com o disposto nesta Subseção.”
A implantação do sistema de split payment – pagamento fracionado, em português – como mecanismo central de arrecadação dos novos tributos sobre o consumo (IBS, CBS e Imposto Seletivo), inaugurado pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentado pela Lei Complementar nº 214/2025, representa, sem dúvida, uma revolução no sistema tributário brasileiro.
Com ele, os prestadores de serviços de pagamento eletrônico ficam obrigados a segregar, isto. separar e recolher automaticamente os valores correspondentes ao IBS e à CBS no momento da liquidação financeira das transações relativas ao fornecimento de bens ou serviços.
Trata-se, sem sombra de dúvida, de um modelo eficiente, que visa eliminar a inadimplência tributária e a evasão fiscal. Contudo, sua aplicação indiscriminada a todos os setores da economia revela um viés tecnocrático e perigosamente desconectado da realidade, especialmente quando se trata da construção civil.
É o que demonstraremos a seguir.
II – INCOMPATIBILIDADE DO SPLIT PAYMENT COM O SETOR DA CONSTRUÇÃO CIVIL
O setor da construção civil apresenta uma série de peculiaridades operacionais, contábeis, jurídicas e tributárias que tornam o sistema do split payment, na prática, incompatível com sua dinâmica de funcionamento e de negócios.
A uma, em razão do descompasso entre receita e fato gerador: os empreendimentos imobiliários, como edifícios residenciais ou comerciais, costumam ser comercializados em etapas muito anteriores à conclusão da obra, muitas vezes ainda na planta, com recebimento antecipado de parcelas pelos incorporadores.
Todavia, o fato gerador dos tributos sobre o consumo não se consuma nesse momento, mas apenas com a efetiva entrega da unidade, geralmente condicionada à obtenção do habite-se ou do registro no cartório de imóveis.
Se o split payment for aplicado no momento do recebimento dos valores, como assim exige o art. 31 supra, estaremos diante de uma cobrança antecipada de tributos, sem que tenha ocorrido o fato gerador, seja do IBS ou da CBS, violando de forma direta o princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da Constituição Federal).
Além disso, essa antecipação criaria um descompasso financeiro insustentável, pois retiraria da incorporação civil recursos essenciais para o custeio da própria obra, recursos esses que, em muitos casos, estão protegidos pelo regime do patrimônio de afetação (Lei federal nº 10.931/2004), cuja segregação tem como objetivo garantir a conclusão do empreendimento e a proteção dos adquirentes.
A duas, em razão do acúmulo sistemático de créditos tributários. A construção civil consome grande volume de insumos e bens com alta carga tributária – cimento, aço, cerâmica, madeira, tintas, materiais elétricos e hidráulicos, máquinas, equipamentos e veículos, etc. –, mas o produto final (o imóvel) não é comercializado como mercadoria ou serviço típico sujeito a débito de IBS ou CBS de forma recorrente.
Essa assimetria inevitavelmente gerará créditos acumulados sem compensação imediata, e exigirá que os entes tributantes, por intermédio do Comitê Gestor do IBS e da Receita Federal do Brasil, ressarçam, em dinheiro, os contribuintes.
Lamentavelmente, a experiência brasileira relativamente ao ressarcimento de créditos tributários – a exemplo dos créditos de exportação do ICMS – é, no entanto, notoriamente morosa, gerando insegurança jurídica e risco econômico às empresas, que precisarão capitalizar suas obras com recursos próprios ou recorrer ao crédito bancário para substituir o fluxo de caixa perdido com a retenção antecipada dos tributos.
E a três, porque essa problemática se agrava ainda mais quando se considera a participação da construção civil em licitações públicas e contratos administrativos celebrados com os Governos Federal, Estadual e Municipal.
Nesses casos, os repasses são normalmente feitos por medição, após etapas de execução das obras ou, até mesmo, após o final da obra, sendo comuns os atrasos e contingenciamentos.
A retenção automática de tributos via split payment, aplicada a esses recebimentos, poderá implicar recolhimento de impostos sobre valores ainda não integralmente recebidos ou não garantidos contratualmente e, o que é mais grave, valores bastantes elevados, aprofundando o desequilíbrio financeiro dos contratos públicos e comprometendo a continuidade das obras, especialmente em projetos de infraestrutura e habitação de interesse social.
Diante desse cenário, é urgente que o legislador congressual e os órgãos reguladores reconheçam que a aplicação irrestrita do split payment ao setor da construção civil é tecnicamente inviável e juridicamente insustentável.
De lembrar que o inciso II do § 2º do art. 35 da própria LC 214/2025 autoriza o Comitê Gestor do IBS e a Receita Federal (CBS) definirem determinados setores a optar pelo sistema do split payment. A nosso sentir, essa facultatividade não resolve o problema.
III - Proposta de alteração na Lei Complementar nº 214/2025
Como dito na parte final do tópico anterior, não basta tornar facultativa a opção pelo split payment pelas empresas da construção civil.
Entendemos que, para compatibilizar o sistema de arrecadação com a realidade da construção civil, propõe-se a inclusão do seguinte parágrafo ao art. 31 da LC nº 214/2025:
"Art. 31.
(...)
§ 4.º O disposto neste artigo não se aplica às operações relativas a empreendimentos imobiliários ou contratos de execução de obras no âmbito da construção civil, cuja tributação e forma de recolhimento serão disciplinadas por regime específico."
Assim, entendemos que a inclusão do § 4º acima transcrito garante segurança jurídica, respeita as particularidades do setor e cria espaço legislativo para a construção de um modelo mais compatível com a atividade imobiliária e de infraestrutura.
IV - CONCLUSÃO
É inegável que o setor da construção civil, ao lado do agronegócio, é um dos motores da economia brasileira, gerando milhões de empregos diretos e indiretos, e representando parcela significativa do PIB.
Assim, sufocar esse setor com um modelo de arrecadação incompatível com sua realidade econômico-financeira não é apenas um erro técnico e jurídico, mas uma ameaça ao desenvolvimento nacional.
A solução, portanto, é clara: excluir o setor da construção civil da aplicação do sistema split payment e instituir um regime próprio, transparente e viável de pagamento do IBS e da CBS.
Artigo produzido por José Ribeiro Neto